É consenso entre os juristas o
reconhecimento de que em nosso ordenamento jurídico existe uma infinidade de
leis que são letras mortas, obsoletas, que não ensejam o ideal de justiça e que
inviabilizam os direitos sociais garantidos aos cidadãos. Nota-se, também, em
nossa sociedade, a busca por meios que sirvam para opor resistência e controlar
os atos arbitrários da autoridade constituída e práticas governamentais que
extrapolam os limites de suas prerrogativas e acabam entrando na esfera dos
direitos sociais, quase sempre restringindo-os.
Tendo a concepção do Direito como um
mecanismo de mudança social, que deve acompanhar a evolução da sociedade,
objetivando saciar os anseios de justiça, gerar a paz social e garantir
direitos, quis encontrar em nosso universo jurídico algum instituto que
legitimasse a resistência dos cidadãos contra as leis injustas, atos
arbitrários e práticas governamentais que não reflitam o interesse da
sociedade.
No decorrer desta busca deparei-me
com o direito à Desobediência Civil, um meio que permite ao indivíduo e à
sociedade intervirem diretamente nas instituições públicas. Um método que
permite defender todo o direito que se encontra ameaçado ou violado, uma forma
de pressão legítima, de protesto, de rebeldia contra as leis, atos ou decisões
que ponham em risco os direitos civis, políticos ou sociais do indivíduo.
Ao iniciar a pesquisa sobre o tema,
surgiram vários questionamentos sobre a concepção da ideia de Desobediência
Civil, suas características, seus fundamentos e suas manifestações.
No desenvolvimento desse artigo
abordarei esses aspectos, de forma que ao final do mesmo possamos considerar a
Desobediência Civil como um mecanismo capaz de suscitar leis mais legítimas e
justas, enfim, um instituto de que o cidadão dispõe para garantir seus direitos
e controlar os atos do Estado para que este não extrapole suas prerrogativas e
cumpra com a sua função social.
Capitulo
I:—
1 - DESOBEDIÊNCIA
CIVIL.
1.1 – Surgimento
Histórico do Direito à Desobediência Civil.
É comum
ver presente em alguns momentos históricos, como nas campanhas promovidas por Thoreau, Gandhi, Luther King, Antônio Conselheiro etc., um claro
sentimento de apoio a determinadas ações contrárias à lei, ante a necessidade de preservação da justiça e
concretização de direitos.
Uma dessas
ações contrárias à lei é a desobediência civil. Esta é um meio que visa
aprimorar a democracia ao permitir que os indivíduos, as minorias e, mesmo, as
maiorias oprimidas, participassem diretamente do processo político. Constituía
a tática adequada na defesa dos direitos da cidadania, pois aplicava-se em
todos os domínios – político, econômico e social – exprimindo protesto contra
os abusos do Estado.
É um ato ilegal que se justifica por dois motivos: 1) é um
instituto da cidadania, pois tem como finalidade manter, proteger ou adquirir
um direito negado; 2) é fundamentado pelos princípios de justiça e eqüidade.
A cidadania de
que falamos não é uma cidadania que se apresenta de forma passiva.
Referimo-nos, aqui, a uma cidadania real, prática, chamada de cidadania
ativa, defendida por Maria Victória Benevides. Ela se define por ser criativa e
exigente, pois, além das exigências feitas ao Estado e a outras instituições,
reclama a criação de espaços públicos para que os cidadãos possam participar
diretamente das ações sociais, se fazendo agente ativo no cenário político,
social e civil. Como exemplo desses espaços públicos, podemos citar os
movimentos populares, sindicais e sociais.
Capitulo II:—
2. Conceitos sobre a Desobediência Civil:
2.1 – Segundo Henry David Thoreau.
A obediência às leis e práticas
governamentais dependia da avaliação individual, que devia negar a autoridade
do governo quando este tivesse caráter injusto. Não importava que fosse
expressão da vontade da maioria, pois esta nem sempre agia da melhor forma
possível. A desobediência resultava dos direitos essenciais do cidadão sobre o
Estado, que a empregaria sempre que o governo extrapolasse suas prerrogativas
ou não correspondesse às expectativas geradas.
Thoreau justificava a desobediência como o
único comportamento aceitável para os homens, quando se deparassem com
legislação e práticas governamentais que não procurassem agir pelos critérios
da justiça ou contrariassem os princípios morais dos indivíduos.
Dizia que o homem
possui um compromisso com a sua consciência, ao expor, em seu livro, as
seguintes palavras:“Será que o cidadão deve desistir de sua consciência, mesmo
por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por
que então estará cada pessoa dotada de uma consciência? Em minha opinião,
devemos ser primeiramente homens, e só posteriormente súditos. Cultivar o
respeito às leis não é desejável no mesmo plano do respeito aos direitos. A
única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo
que julgo certo”. (THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil e
Outros Escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002, Pág. 15.)
Thoreau dizia
que os homens que serviam ao Estado de forma consciente, de forma crítica e não
maquinalmente, eram tidos como inimigos e não como homens bons e, dessa forma,
classificou os tipos de homens que servem ao Estado; vejamos como o referido
autor trata o tema em sua obra: “Nesse contexto, a massa de homens serve
ao Estado não na sua qualidade de homens mas sim como máquinas, entregando os
seus corpos.(...) Na maioria das vezes não há qualquer livre exercício de
escolha ou de avaliação moral.(...) é comum, no entanto, que os homens assim
sejam apreciados como bons cidadãos. Há outros, tal qual a maioria dos
legisladores, políticos, advogados, funcionários e dirigentes, que servem ao
Estado principalmente com a cabeça, sendo bastante provável que eles sirvam
tanto ao Diabo quanto a Deus - sem intenção -, já que raramente se dispõem a
fazer distinções morais. Uma quantidade bastante reduzida há que serve ao
Estado também com sua consciência: são os heróis, patriotas, mártires”,
reformadores e homens, que acabam por isso necessariamente resistindo, mais do
que servindo. Conquanto isso, o Estado os trata geralmente como
inimigos.” (THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil e Outros Escritos.
São Paulo: Martin Claret, 2002, Pág. 16-17.)
Capitulo III:—
2.2 – Segundo Hannah Arendt.
A desobediência
civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou
os canais para as mudanças não funcionam, e as queixas não serão ouvidas nem
terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de
efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e
constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.
Hannah Arendt
defende o estabelecimento da desobediência civil entre as instituições
políticas por ser o melhor remédio possível para a falha básica da revisão
judicial. Defende a opinião de que a não-violência é uma característica
específica da desobediência civil que a distingui das outras formas de
resistência de grupo, como a revolução ou a guerrilha.
Capitulo IV
2.3 - Segundo Maria Garcia.
Segundo Maria
Garcia, a desobediência civil pode ser classificada como um direito
fundamental, pois está diretamente ligada à concretização da cidadania.
Constrói a justificativa da desobediência, baseada na idéia de que a cidadania
requer instrumentalização ampla e efetiva; portanto, o seu exercício não se
exime de direitos e garantias expressamente expostos na Constituição. Reforça a
classificação da desobediência civil como um direito fundamental, ao citar o
art. 1º § da CF/88 onde diz que “Todo poder emana do povo”. Diante deste
dispositivo constitucional, defende a idéia de que o cidadão detém a soberania
popular e, portanto, o poder de elaborar a lei e de participar da tomada de
decisão, a respeito do seu próprio destino. Avança ainda mais em sua tese, ao
dizer que o cidadão, por conta desse dispositivo constitucional, tem a
prerrogativa de deixar de cumprir a lei ou de obedecer a qualquer ato da
autoridade sempre que referidos atos se mostrem conflitantes com a ordem constitucional,
direitos ou garantia constitucionalmente assegurados.
Capitulo V:—
3. Manifestações da Desobediência Civil.
3.1 – Henry David Thoreau.
Como
manifestações da desobediência civil, podemos destacar a negação de Henry David
Thoreau de cumprir as suas obrigações tributárias. Ele desobedeceu à lei de seu
Estado com o firme propósito de preservar a paz, pois o imposto que se recusou
a pagar era destinado a financiar a guerra contra o México.
Thoreau sempre
se colocou contrário à guerra do México e à escravidão nos Estados Unidos. Para
Thoreau, era moralmente inaceitável contribuir com um governo escravocrata e
que semeava a injustiça contra os seus vizinhos.
O sábio de
Concord pregava que o Estado corrompia e desvirtuava até o homem mais bem intencionado
que a ele se submetia, quando o obrigava a servir ao exército e a financiar
guerras através de seus impostos.
Thoreau, com
suas idéias, valorizou o homem, colocando-o em um patamar acima do Estado,
destacando-o como um homem dotado de consciência e moral e não como um súdito
cego que tem como princípio a obediência incondicional ao Estado.
Por conta de
sua desobediência, Thoreau foi preso e, na prisão, fez diversas considerações
sobre a atitude do Estado por tê-lo prendido; no seu livro “A Desobediência
Civil”, Thoreau refletia: “Não pude deixar de sorrir perante os cuidados
com que fecharam a porta e imaginaram trancar as minhas reflexões – que os
acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade. De fato, o perigo estava
contido nessas reflexões. Já que eu estava fora de seu alcance, resolveram
punir o meu corpo. Agiram como crianças incapazes de enfrentar uma pessoa de
quem sentem raiva e por isso dão um chute no cachorro do seu desafeto. Percebi
que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com sua
prataria, incapaz de distinguir seus amigos dos inimigos. Todo respeito que
tinha pelo Estado foi perdido e passei a considera-lo apenas uma lamentável
instituição”.(THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil e Outros Escritos.
São Paulo: Martin Claret, 2002, Pág. 30.)
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