STF
caminha para novo caso Dreyfus?
Mais cedo ou mais
tarde, este julgamento também será julgado, como ocorreu no caso Dreyfus. Ω—>
O preço desse processo de exceção não é só o risco da injustiça, mas o
desrespeito à Constituição. A corte francesa decidiu reincidentemente contra
provas, mandando às favas conquistas fundamentais da revolução de 1789. Será esse
também o caminho do STF?
Ω—> No
dia 29 de setembro de 1902, falecia o célebre escritor francês Emile Zola, em
circunstâncias até hoje não esclarecidas. Da sua vasta obra literária, um pequeno
panfleto foi o que mais causou impacto. Intitulava-se “Eu acuso!”, publicado em
1898, com tiragem inicial de 300 mil exemplares. Abordava rumoroso tema
judicial, conhecido como o caso Dreyfus.
Ω—> Tudo começou nos idos de 1894, quando uma faxineira
francesa encontrou, na embaixada alemã, em Paris, carta pertencente ao adido
militar, tenente-coronel Schwarzkoppen. O texto parecia
indicar a existência de um oficial galo espionando a favor de Berlim. Dentre os
possíveis autores do documento incriminador, apenas um era judeu, o capitão Alfred
Dreyfus.
A
possibilidade acusatória caiu como uma luva para as elites francesas, que apostavam em
reconstruir sua influência com discurso artificialmente nacionalista. Pairava sobre
a burguesia tricolor a pecha de vende-pátria, desde a rendição, em 1871, na
guerra franco-prussiana. O primeiro-ministro Louis Adolphe Thiers, depois
presidente da III República, chegou a contar com colaboração do invasor alemão
para esmagar a Comuna de Paris, poucos dias após o armistício que colocou fim
aos embates entre ambas nações.
Atacar os judeus, portanto, era bom negócio para despertar o ódio
racial-chauvinista da classe média e reconquistar sua simpatia. Acovardados
diante do império de Bismarck, os magnatas de Paris trataram de buscar apoio social
apontando para um inimigo interno. Recorreram à artilharia da imprensa sob seu
controle para disseminar imagem de vilania que servisse a seus objetivos.
O julgamento
contra Dreyfus incendiou o país. O oficial, além da dispensa por traição, acabou
condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa. Um
processo relâmpago, conduzido por tribunal militar, sob pressão dos jornais
direitistas, selou seu destino.
Três anos depois de promulgada a sentença, o irmão do réu descobre documentos
que inocentavam Dreyfus e comprometiam Charles-Ferdinand Esterhazy, nobre
oficial de origem húngara, com o ato de espionagem. Um segundo julgamento é
realizado, em 1898, mas os magistrados mantêm a decisão anterior, a despeito
das novas provas.
Emile Zola escreve, então, seu famoso livreto. Destemido e respeitado, denuncia
o processo como fraude judicial e conspiração política, provocando enorme
comoção. Morreria asfixiado, há 110 anos, presumivelmente assassinado, a mando
de quem não gostava de suas posições.
Quanto a Dreyfus, anistiado em 1899, a verdade seria reposta por um tribunal
apenas em 1906. Mas jamais foi reincorporado ao exército ou compensado pela
injustiça sofrida.
Esta história se conecta como uma parábola ao julgamento da ação penal 470,
conhecida como “mensalão”, atualmente tramitando pelo Supremo Tribunal Federal,
a máxima corte judicial brasileira.
Uma das inúmeras
situações de financiamento ilegal de campanhas vem a luz, dessa vez envolvendo
o Partido dos Trabalhadores e seus aliados, e a máquina de comunicação a serviço
das elites trata de transformá-la no “maior caso de corrupção da história do
país”.
Forja-se uma
narrativa verossímil, de votos comprados no parlamento, ainda que não haja
qualquer evidência concreta de sua existência. Inflama-se as camadas médias
contra o principal partido de esquerda e alguns de seus dirigentes históricos.
Lança-se campanha incessante de pressão sobre os ministros da corte,
oferecendo-lhes a opção entre o céu e o inferno a depender de sua atitude diante
do caso.
Jurisprudências
novas são criadas para atender o clamor da opinião publicada. Garantias
constitucionais, atropeladas, dão lugar a outros paradigmas. Alguns ministros
resistem bravamente, mas vai se desenvolvendo roteiro midiático cujo desfecho
está antecipadamente escrito, salvo mudanças abruptas.
Disse o ministro
Ayres Britto, a propósito, que não deve ser perguntado se o réu sabia de
suposto fato criminoso, mas se haveria como não sabê-lo. Ou seja, não é fundamental
que haja provas de autoria daquilo que se denuncia. Basta que sua função – ou
até papel histórico – torne legítima a afirmação de que o indiciado tem o
domínio do fato, elemento que seria suficiente para condenação exemplar, segundo
o mais recente parâmetro judicial.
Há um Dreyfus escolhido, nessa alegoria. Dessa feita não é um judeu, que outros
são os tempos, mas a principal figura do PT depois do ex-presidente Lula. José
Dirceu, ex-presidente do partido e ex-chefe da Casa Civil, foi sendo
transformado, nos últimos anos , em um grande vilão nacional. A campanha orquestrada
contra si parece ser o caminho dos conservadores para ajustar contas com a esquerda
na barra dos tribunais.
A virulência dos
ataques, aliás, é reveladora do pano de fundo que percorre o processo, além de
incentivar o raciocínio de algumas das vozes e veículos que mais fortemente
combatem os réus. Dirceu e José Genoino, goste-se ou não deles, são
representantes ilustres da geração que se dispôs a resistir, com a vida ou a
morte, contra a ditadura que muitos de seus detratores apoiaram com galhardia
ou diante da qual se acovardaram.
Líderes de um
campo político considerado morto no final do século passado, ambos têm que ir
ao cadafalso para que a direita possa ter chance de marcar com lama e fel os
dez anos de governo progressista, golpeando o partido que encarna esse projeto.
Suas biografias devem ser rasgadas ou suprimidas, no curso dessa empreitada,
pelo trivial motivo de apresentarem mais serviços prestados à nação e à democracia
que as de quem hoje os agride. Inclusive, ironicamente, as de quem tem o dever
legal de julgá-los.
Junto com Dirceu e Genoino, sobe ao banco dos réus também Delúbio Soares. Dos
três dirigentes, é quem efetivamente assumiu responsabilidade por acordos e
financiamentos irregulares para disputas eleitorais e partidos aliados. Sua
versão dos fatos, pelos quais jamais culpou quem fosse, foi preterida e
desprezada, à revelia das provas, para que vingasse a narrativa de Roberto
Jefferson, o candidato a Esterhazy nessa chanchada.
O ex-deputado
petebista, contudo, é recebido como anjo vingador na seara do conservadorismo e
até por ministros da corte. Sem a tese do “mensalão”, parece evidente, o
espetáculo inquisitorial possivelmente estaria esvaziado. A chacina judicial do
ex-tesoureiro do PT fez-se indispensável.
Mais cedo ou mais tarde, porém, este julgamento também será julgado, como
ocorreu no caso Dreyfus. O preço desse processo de exceção, afinal, não é
apenas o risco da injustiça, mas o desrespeito à Constituição e à democracia. A
corte francesa dobrou-se aos interesses oligárquicos e decidiu reincidentemente
contra provas, mandando às favas conquistas fundamentais da revolução de 1789.
Será esse também o caminho do STF? Mesmo sabendo que a história acontece como
tragédia e se repete como farsa?
Artigo de Breno Altman no Carta Maior